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Paula Borghi

Fazer muitas coisas com uma coisa só

O que significa fazer muitas coisas com uma coisa só? Só é possível trazer o título da individual de Cristina Suzuki na forma de pergunta, porque a própria exposição é a resposta. O que se apresenta na Pinacoteca de São Bernardo do Campo é um recorte generoso de duas décadas de uma produção artística pautada na repetição do gesto e na conceptualização do labor. São apresentados 14 trabalhos com 189 peças realizadas em técnicas variadas como gravura, carimbo, fotografia, vídeo, instalação e objeto, que juntas melhor dimensionam a força de trabalho desta grande artista.

 

Cristina Suzuki é fruto da união da diáspora japonesa com o êxodo rural nordestino. Nascida em 1967 no extremo leste da cidade de São Paulo, ela passou a maior parte da vida em Santo André, uma das grandes regiões industriais que compõem o famoso ABC Paulista, onde vive e trabalha desde 1999. Estar numa cidade operária marcada pelo movimento sindicalista metalúrgico, permitiu que desde a juventude ela convivesse com o discurso que na perspectiva da classe trabalhadora ser produtiva significa sobretudo ser explorada, uma vez que a produtividade só beneficia quem detém os meios de produção.

 

Driblando sair de uma forma de exploração e entrar em outra, a artista usa dos meios de produção da arte a seu favor. Frases como “Volte sempre”, “Agradecemos a preferência”, “Servimos bem para servir sempre” são lemas que estão nas bandeiras que a artista levanta, literalmente. Enquanto o mercado da arte se apresenta, cada vez mais, como única opção para artistas sobreviverem, ironizá-lo parece ser a melhor forma de se posicionar sem travar uma quebra de braços. Esta mensagem se faz presente também no vídeo Lugar de ser feliz não é supermercado, 2015, que poderia ser facilmente interpretado pela frase “lugar de artista ser feliz não é feira de arte”, uma vez que este é um ambiente extremamente competitivo como todo mercado, independente de seu produto.

 

Partindo da condição não assalariada intrínseca à profissão de artista, logo sem direitos trabalhistas, é pela institucionalização de sua obra que ela persevera a autonomia econômica e criativa. Atuando como referência da produção contemporânea do ABC Paulista, sua obra circula sobretudo em salões e editais públicos (como o presente caso), constando no acervo de importantes coleções paulistas, tais como: SESC Santo André, Prefeitura de Atibaia, Pinacoteca de São Bernardo do Campo e Prefeitura de Santo André.

 

Se estabelecendo fora do núcleo duro da capital paulistana, embora atuando também nele, seus primeiros trabalhos Portrait, 2004-2010 e Fotocelular, 2006-2009 falam justamente sobre os lugares em que ela conviveu. Com uma série de retratos de objetos encontrados em casas frequentadas naquela época e de fotografias que registraram seu cotidiano ao longo de anos, a artista nos convida a caminhar com ela em ambientes íntimos, como o lar, e rotineiros, como a rua. O que se nota é uma cartografia afetuosa que não se restringe a Santo André, mas que se intensifica na região. Duas séries que, quando vistas lado a lado, instauram um diálogo entre os demarcadores sociais e visuais que habitam tais espaços privados e públicos.

 

A respeito do espaço privado, é impossível não notar neste a presença do trabalho doméstico, na maioria das vezes executado pela mulher. Por se tratar de um tema que atravessa a artista diretamente, uma vez que localiza a “dona de casa” em continuidade com o trabalho não assalariado, curioso perceber que após hiato de mais de seis anos sem trabalhar com fotografia, Cristina Suzuki retorna a essa linguagem justamente com a série Coleção de Verão para Panos de Chão, 2016. Nesta, panos de chão são ampliados 40% maior que a escala real e inseridos num suporte de metacrilato, fazendo com que algo ordinário se torne glamoroso. Metaforicamente é possível dizer que esta série alude ao trabalho periódico da limpeza, que por mais invisibilizado que seja, é fundamental para manter tanto os meios de produção numa fábrica, por exemplo, como o bom funcionamento da casa e de espaços comerciais. Tem-se aqui uma relação direta entre gênero, mão de obra e fazer artístico, tríade que se repete sistematicamente no discurso da artista; consequência do “patriarcado do salário”, termo cunhado pela filósofa italiana Silvia Federici.

Em perspectiva, estes três trabalhos revelam que o fazer em série é um sintoma próprio da artista. Ao analisá-los em justaposição, faz-se também visível uma evolução da fotografia e dos meios tecnológicos de produção fotográfica; outro assunto que é muito caro à artista. Em ordem cronológica foram usados os seguintes aparatos: Portrait, câmera fotográfica analógica e digital cybershot; Fotocelular, câmera do aparelho celular; Coleção de Verão para Panos de Chão, câmera digital profissional. É possível notar a velocidade em que se atualiza a tecnologia da imagem num curto período de tempo, 2005 até 2016, bem como a velocidade com que se produzem, se consomem e se tornam obsoletos os meios de produção.

 

O tempo, pautado na relação entre o “antigo” e o “atual”, se faz presente tanto nos meios técnicos eleitos pela artista, como também em seu discurso. Outro exemplo é a série Novos e Velhos Clichês para Era Contemporânea, 2011-2019, que parte de palavras que há muitos anos funcionam como códigos determinantes para estereótipos, condutas de pensamentos e ações que se perpetuam socialmente. Não à toa o clichê mencionado no próprio título exerce um papel de duplo significado; do que por ser muito dito torna-se um chavão e do que é usado como uma matriz para cópia. Em ambos os casos, o clichê está sempre relacionado à lógica da repetição, tomando dimensões gritantes quando correlacionado à lógica do trabalho. Este é o caso de Negócio da China, 2018, um clichê que pode ser interpretado pela repetição do trabalho análogo à escravidão e pela cópia de um produto de qualidade duvidosa.

 

Portanto, é possível interpretar o esgotamento do gesto na prática artística de Cristina Suzuki como um espelho das tendências estruturais da produção capitalista em que se propaga o alargamento da jornada de trabalho até o limite da resistência física da mão de obra, bem como da extração máxima de esforço com o menor número de trabalhadores e da desvalorização da força de trabalho. É refletindo esta lógica que a artista traz uma vez mais a problematização do trabalho como cerne da questão do trabalho de arte. Parafraseando Silvia Federici, “Não é a produção que tem sido sempre o fator decisivo na distribuição social da riqueza, mas a força para detê-la. Quando dizemos que produzimos capital, dizemos que queremos destruí-lo”.

 

Produzir para destruir o capital, Imprinting, uma série iniciada em 2012 e ainda em andamento, é uma de suas obras que melhor expressa tal ideia. Nesta, a artista cria uma figura inspirada nas padronagens decorativas asiáticas, caracterizada pela linha em curva e pela forma orgânica. O resultado é uma matriz de um carimbo que permite a artista criar infinitas possibilidades de combinações visuais a partir de uma mesma imagem. Uma figura que, mesmo sendo trabalhada exaustivamente por doze anos, está longe de se esgotar. Pelo contrário, inspirou outros trabalhos com carimbo, como a série de três vídeos Repartição, 2014, e o vídeo Aceite, 2022.

 

Em 70 Cópia, um dos três vídeos de Repartição, um carimbo com a palavra cópia é carimbado setenta vezes no mesmo lugar sobre um papel quadriculado até alcançar a não identificação do que está escrito, sendo possível visualizar apenas um borrão. Com uma lógica muito semelhante, no vídeo Aceite, com uma mão a artista carimba sucessivamente em seu próprio peito a palavra aceito, enquanto a outra a apaga até chegar ao ponto em que a palavra marcada no peito é submergida por uma grande massa azul própria da tinta do carimbo. São “obras incansáveis”, que se propõem persistir até a “destruição” da relação entre acumulação capitalista e exploração da classe trabalhadora.

 

Por fim, esta é apenas uma possível leitura da obra de Cristina Suzuki, muito embasada nas ideias marxistas sobre a luta de classe com atualizações fundamentadas pelo pensamento feminista de Silvia Federici. Acredita-se que ir por este caminho é a melhor forma de contextualizar a presença da repetição do gesto da artista em sua prática, que pode ser comentado pelo viés da persistência de fazer arte, de acompanhar os avanços tecnológicos dos meios de produção e da força de trabalho da artista mulher em sua dupla jornada de trabalho (casa e ateliê) que dificilmente, para não dizer nunca, é reconhecida em pé de igualdade com o gênero masculino. De um gesto que faz muitas coisas com uma coisa só.

Paula Borghi 

Ilhéus, abril de 2024

Pricila Arantes

Ctrl+C_Ctrl+V

A reutilização de objetos do cotidiano na criação de obras de arte não é novidade, data tendo sido tema frequente desde as correntes modernistas do século XX. A reapropriação do cotidiano, nesse sentido, é o fundamento da exposição individual Ctrl+C_Ctrl+V, de Cristina Suzuki. Os 36 trabalhos da mostra, realizados nos últimos 12 anos e em exposição na Diáspora Galeria, de 25/05 a 03/08, estão interligados por questões particulares da artista, de sua juventude na Zona Leste de São Paulo até sua mudança e fase adulta, em Santo André. Esses locais permeiam sua produção, repleta de um humor ácido e questionamentos de padrões sociais de seu meio.
 

A exposição inicia-se com uma obra na fachada da galeria da série Papel de pão (2023), um tecido gravado com os seguintes dizeres: “Trabalho com a minha família para melhor servir a sua”. Suzuki se apropria de slogans de fachadas de comércios, de embalagens para pães com frases padronizadas, subvertendo-as, dando-lhes forma (de bandeiras, inclusive), incutindo ali seus questionamentos de padrões presentes no Brasil até hoje (muitos desses pensamentos, inclusive, são vestígios da época colonial, onde apenas uma minoria era favorecida). A bandeira, classicamente definida como símbolo visual representativo de um estado soberano, é modificada pela artista, que altera significados ao transformar papéis de pão em bandeiras, com frases que remetem à colonização brasileira (“Para melhor servir”, ou seja, não apenas servir, mas servir bem). As obras da série Imprinting trazem uma pesquisa iniciada a partir da chita, tecido bastante popular no país, mas que aqui revela uma busca por reconexão com memórias afetivas internalizadas. Cristina é descendente de mãe nipo-brasileira e pai nordestino, e, desde pequena, teve acesso às tradições culturais maternas, por ter passado a primeira infância no bairro Carrão junto da família da mãe. Já a relação familiar paterna, contudo, foi escassa, uma vez que seu ele se mudou de Quipapá (Pernambuco) para São Paulo aos 16 anos, em busca de melhores condições de vida e trabalho, tendo voltado para seu estado natal apenas duas vezes, o que resultou em uma desconexão com as origens familiares paternas por parte da artista.

A partir da pesquisa com a chita, fazenda ordinária de algodão estampada em cores, que muito a fazia lembrar desse lado esquecido paterno, Suzuki expandiu seus estudos para estampas de diversas culturas mundiais, como padrões de azulejaria de São Luiz (Maranhão), marroquina e portuguesa, padrões têxteis indianos, japoneses e chineses, ornamentos da Grécia Antiga e outras civilizações, para assim chegar em Figura 1. O trabalho ganhou outras mídias e materialidades – de folhas de papel, produzindo novos padrões modulares, até mesmo paredes, na criação de murais instalativos. Para ela, o que realmente importa são os processos manuais que constituem a mão de obra, não apenas o resultado em si.

Imprinting também chega as redes sociais em forma de questionamento da prática artística contemporânea. O trabalho, iniciado em 2015, momento em que Suzuki tentava concorrer em editais públicos de diversas instituições culturais brasileiras, teve seus croquis publicados em suas redes sociais como se as obras efetivamente tivessem sido realizadas. Esse desdobramento da série explora os processos da profissão de artista e os questiona de forma bem-humorada. É interessante ver como as pessoas não percebem que são imagens manipuladas e até mesmo expressão desapontamento de terem “perdido” a obra ao vivo.
 

A questão da reapropriação e do colecionismo aparece em Negócio da China (2018-2019), quando Suzuki começa a reunir diversos objetos baratos e triviais que encontrava em lojas de R$ 1,99 da cidade – um souvenir da Torre Eiffel, um chaveiro do Corinthians, uma caixa de unhas postiças, um boneco do Super-Homem, entre outros, todos exibindo a etiqueta “Made in China”. A partir daí, a artista cria um display de placas douradas penduradas como se fossem medalhas. Utilizando esse mesmo processo, no trabalho Lugar de ser feliz não é supermercado (2015-2024), Cristina guarda durante três anos folhetos de propaganda deixados no portão de sua casa e reutiliza-os para fazer uma trama rendada em seu portão, eternizando o momento em formato de vídeo.
 

A obra Ctrl+C_Ctrl+V (2021), homônima da exposição, evidencia o movimento da artista em copiar e colar a realidade, transforma-a nesse processo. No vídeo, Suzuki captura a tela diversas vezes criando algo novo, apesar de essa ser uma cópia.
 

Na exposição Ctrl+C_Ctrl+V, a proposta é verificar, nesse conjunto de trabalhos, a maneira criativa com ela utiliza materiais, dos mais simples (como panfletos de supermercado) até as mais diversas materialidades e meios de comunicação, a fim de subverter o meio em que vive e a sua profissão como artista no mercado brasileiro.

Nos 20 anos de carreira de Cristina Suzuki, percebe-se que as suas obras, mesmo que desenvolvidas em momentos distintos, conectam-se e entrelaçam-se, criando um corpo de trabalho consistente.

Carollinne Akemy Miyashita
Priscila Arantes

Julia Lima

Padrão

 

Repetir repetir – até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

 

Manoel De Barros
O livro das ignorãças, 1993

 

 

A repetição cria padrões, tanto quanto é capaz de criar algo novo. E não é esse o conselho que damos a jovens artistas no início de suas carreiras? Refazer, de novo e de novo, até se transformar, até que se encontre a resposta. Este gesto pode parecer contraditório – afinal, a partícula “re-”, de imediato, evoca o repetir, a reiteração idêntica. Mas também pode indicar mudança: revisão, outro olhar; releitura, outra interpretação. Ora igual, ora diferente, ora de novo, ora algo novo. É dentro dessa complexa dialética entre a reprise e a revolução que reside a produção de Cristina Suzuki.

 

Somos constantemente atravessados por esses impasses da linguagem. O próprio título da exposição, Padrão, carrega dezenas de sinônimos condensados em suas poucas seis letras – seria o mediano, ordinário, ou o modelo de excelência a ser seguido? Seria a repetição de um desenho, uma estampa? No entanto, definições-padrão não nos interessam aqui. Com um dicionário na mão poderíamos escolher a designação que nos convém, mesmo que à revelia da semântica. No caso da produção de Suzuki, é na sintaxe – na maneira como se constrói a linguagem (visual) – que se encontra sua peculiaridade tão intrigante. Seus trabalhos extrapolam e transcendem os paradoxos, os sentidos contrários, porque a arte permite conviver a contradição e o absurdo, e a graça está em como nós, espectadores, lidamos com isso.

 

A artista sempre operou entre jogos de linguagem e jogos visuais, tensionando as categorias da pintura, da fotografia, da escultura, etc. Na série Imprinting, iniciada em 2013, criou um desenho inicial (uma espécie de unidade básica) que podia ser (re)combinado de diferentes maneiras, sobre os mais variados suportes, em distintas proporções e arranjos, desdobrando-se infinitamente.

As padronagens que resultam dessas combinações já ocuparam muros, foram tatuadas e tornaram-se carimbos, pinturas e adesivos, podendo ainda vir a ser tudo o mais que Suzuki desejar. Os subtítulos de cada versão reforçam o processo metódico de execução da obra, lembram uma receita ou manual de instruções, descrevendo a imagem a que se referem – como a obra que recebe os visitantes no espaço externo da galeria: Figura 1 e Figura 1 espelhada alternadas sobrepostas e centralizadas na vertical e horizontal.

 

Já a série “Novos e Velhos Clichês para Era Contemporânea”, a artista brinca com a ideia de padrão como medida ideal a ser seguida, nosso velho conhecido padrão de beleza. E mais, própria ideia de clichê é um clichê, clichês são clichês porque são verdades, um clichê em si mesmo. Contudo, o termo também serve para designar placas de impressão tipográfica, material que Suzuki escolheu para dar corpo ao trabalho. Ela vem colecionando as palavras e expressões (em geral ofensivas) que se tornaram sinônimo de estereótipos, como a loira burra, o terrorista muçulmano e o retirante nordestino, e as transformando em placas que revelam, para além dos sentidos figurados, o modo como a linguagem pode ser manipulada, sem que notemos como é perniciosa a recorrência dos lugares-comuns.

 

Por fim, a “Coleção de Verão para Panos de Chão” opera em um outro lance. Afinal, qual é a autenticidade de se ter a imagem do objeto no lugar do objeto em si? Na verdade, já faz tempo que a arte não se ancora mais na ideia de autenticidade. Poderia um falsificador ser artista tanto quanto o pintor original? Precisa a arte ser feita pelas mãos do próprio artista? Somos iludidos todos os dias por jogos de espelho e fumaça que criam simulacros da realidade e que fazem com que nos perguntemos o que pode ser real. Mas isso não importa. O que a repetição pode nos ensinar é que tudo que se repete também se renova, e Cristina Suzuki continuará se repetindo para criar algo diferente.

 

 

Julia Lima, janeiro de 2020 

Ananda Carvalho

Fig 1 e Fig 1 espelhada alternadas

 

Os trabalhos desta exposição individual de Cristina Suzuki partem da série Imprinting, desenvolvida desde 2013, e que teve início com esboços desenhados em pequenos cadernos. Entre as diversas formas possíveis, a artista deteve-se em uma, que denominou Fig. 1 (abreviatura de Figura 1) e que se tornou o elemento base para inúmeras combinações. Os títulos das obras dessa série, assim como o desta exposição, são a descrição de seu processo de criação e enfatizam a execução metódica e o movimento que a artista imprime na forma. É por meio desses procedimentos que Cristina compõe diferentes desenhos partindo sempre de um mesmo elemento. 

 

Um procedimento recorrente no processo de criação de Cristina é a não delimitação das mídias e a constante intersecção entre elas. Após os desenhos feitos à mão, Fig. 1 foi redesenhada digitalmente, virou carimbo de tamanhos diversos, foi espelhada e alternada, e carimbou diferentes locais. Centros culturais, espaços alternativos e outras instituições tiveram suas paredes ocupadas por essa operação de multiplicação. Quando suas composições saíram do papel para ativar o espaço físico, tornou-se necessário desenvolver simulações digitais (1) para visualizar como a ação de carimbar seria realizada. O vídeo Figura 1 virada -90 graus sobreposta à gura 1 espelhada, alinhada à esquerda e no topo, esta sequência virada 90 graus e deslocada 100% na horizontal e estas sequências viradas 180 graus deslocadas 100% na vertical consiste em uma animação dessa simulação, reproduzindo virtualmente o gesto de carimbar as paredes da Adelina Galeria. 

Outro desdobramento desse trabalho pode ser visto em Imprinting – Simulações Portáteis, edições de posts feitos na rede social Instragram (2) com imagens de simulações digitais de instalações em galerias, museus e outros espaços culturais que possuem algum,a espécie de edital de seleção (3). Assim como o celular, que pode ser consultado a qualquer momento, Imprinting – Simulações Portáteis emerge como uma exposição “de bolso”, em permanente circulação, para ser acessada quando for desejada.

A exposição Fig. 1 e Fig. 1 espelhada alternadas procura re etir sobre os processos de reprodutibilidade na arte e suas possibilidades de pulverizá-la. É na repetição do gesto criador de sistemas que as proposições de Cristina acontecem. A exposição não se detém na materialidade (em que as paredes são pintadas com tinta) ou na veridicidade dos fatos (se os trabalhos publicados no Instagram realmente aconteceram); ela busca colocar em evidência o gesto artístico para propor discussões que vão além de questões formais e estéticas. 

 

Ananda Carvalho

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[preâmbulo 1] O circuito da arte contemporânea demanda uma contínua apresentação de projetos por meio de editais, nos quais se espera que o artista apresente uma proposição já consolidada e adequada ao espaço expositivo. Ou seja, espera-se que o artista envie uma maquete digital, além de textos que expliquem objetivamente e conceitualmente o que pretende exibir. 

    

[preâmbulo 2] Observamos não só no circuito da arte, mas na sociedade contemporânea como um todo, uma necessidade de o indivíduo visualizar-se ou publicar-se imediatamente nas redes sociais para ser reconhecido pelo outro e para que passe a integrar o uxo de informações nas redes. O celular, a presença massiva das câmeras digitais e a internet móvel recon guram o olhar para que o registro e a distribuição da vivência sejam o ponto de partida para as experiências.

 

[preâmbulo 3] Apesar do circuito artístico contemporâneo brasileiro ter crescido consideravelmente desde o início dos anos 2000, as instituições não dão conta de exibir a produção de todos os artistas. Para citar apenas um exemplo, o edital do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo (um dos mais conceituados do país) recebeu, em 2017, 531 inscritos na categoria exposições individuais para selecionar apenas nove artistas. Esses números signi cam que nem sempre um projeto deixa de ser selecionado por não ser bom. Em conversas com outros colegas participantes de júri de seleção, constatamos que pelo menos 10% dos projetos inscritos, ou seja, aproximadamente 50 são muito bons. Portanto, considerando esse exemplo do CCSP, surge a questão: o que fazer com os mais de 41 projetos classi cados como muito bons, mas que caram de lado, pois apenas nove poderiam ser selecionados?

José Bento Ferreira

Cristina Suzuki: gliptografismos

 

Reprodutibilidade técnica, ataques contra a história oficial da arte e o desenvolvimento da arqueologia proporcionaram um modo diferente de se olhar para a arte glíptica, que remonta ao menos ao período neolítico e difundiu imagens pelo “círculo cultural” que teria conectado diversos povos por todo o globo. Com dizeres e grafismos, Cristina Suzuki produz carimbos e padrões decorativos que subvertem lugares-comuns, seja no jogo dos “clichês” com estigmas sociais ou na transfiguração do espaço promovida por mandalas e arabescos. O procedimento mistura automatismo e casualidade, provoca reflexão sobre os modos de se produzir e difundir imagens e aplica as novas tecnologias para reformular a técnica milenar da impressão de selos com carimbos.

A artista inverte a lógica da produção de imagens e dialoga diretamente com a história da arte ao apresentar as matrizes como trabalhos. No Ateliê Coletivo 2e1, os espectadores manipulavam uma velha bobina para imprimir desenhos que podiam ser destacados e levados ou deixados para um próximo portador. Uma série de trabalhos em formato digital interpela o universo da “pré-produção” artística ao criar exposições imaginárias dos trabalhos em espaços reais aos quais eles ainda não têm acesso. Metalinguagem, participação do público e autoconsciência delineiam uma forma especial de beleza na qual se descobre uma estrutura fractal quando parece uma explosão caótica e na qual variações aparentemente arbitrárias criam ressonâncias e dissonâncias encantadoras.

Segundo Childe e Wolf, as culturas do neolítico foram marcadas pela produção agrícola interdependente. Isto forçava as comunidades assentadas em planícies cultiváveis a trocas constantes de alimentos, ritos, mitos e imagens. Campbell analisa semelhanças entre desenhos encontrados no Oriente Médio e na América do Norte como provas de que “havia uma ponte, não um abismo” entre os continentes, como escreveu Frobenius. Com o modo de produção tributário, caracterizado pela autoridade política centralizada, capaz de mobilizar a força de trabalho necessária para irrigação e drenagem, a interdependência deixou de ser a regra. A própria estrutura do modo de produção por relações de parentesco havia sido uma força motriz para a circulação e, não sem resistência, foi cedendo aos primeiros grandes impérios no delta do Nilo e na Mesopotâmia. Muitas imagens produzidas nesse novo contexto, porém, remontam ao período anterior.

Encontrados no centro-oeste asiático, os achados do Complexo de Báctria-Margiana (BAC) indicam a existência de um centro difusor, o próprio coração do círculo cultural, localizado na região exportadora de cobre e estanho, provavelmente formado a partir de povos das estepes. Entre esses achados, há potes com desenhos de animais, rios e montanhas em “estilo intercultural,” machados gravados com cenas de execução e figuras divinas, estatuetas e, notadamente, uma coleção de carimbos de selos. Como em certos

trabalhos de Cristina Suzuki, a presença material das matrizes alude à difusão de suas impressões, o que pode explicar a recorrência dessas imagens em diversos outros locais, como estelas assírias e pinturas murais egípcias. O homem com cabeça de pássaro é uma figura recorrente na história das antigas civilizações e um dos seus registros mais antigos é o dos carimbos de selos dos sítios BAC. Inúmeras figuras divinas que povoam o imaginário coletivo das primeiras civilizações podem ter coexistido nas comunidades agrícolas do neolítico e talvez não sobrevivessem à revolução urbana se não tivessem sido reproduzidas por carimbos.

 

Cristina Suzuki também parece tentar garantir a sobrevivência de alguma coisa com o seu apreço pelos velhos meios. Não se trata deles mesmos pura e simplesmente, uma vez que aparecem transfigurados por novas tecnologias. A trajetória da artista revela uma convicção sobre o caráter coletivo da produção artística. Assim como os carimbos de selos garantiram às imagens o que Warburg chamaria de “vida póstuma” (segundo Didi-Huberman), os carimbos de Cristina Suzuki oferecem a possibilidade de reviver uma experiência comum que as sociedades modernas se organizaram para negar por meio do mito do indivíduo e do primado da “criação-ficção” (nas palavras de Augé). Seus trabalhos nos permitem olhar para trás e vislumbrar como seria o mundo da arte se as fronteiras legitimadas por uma visão eurocêntrica da história da arte, já muito abaladas, fossem completamente removidas.

Se entendermos essa organização comunitária como mais humana e mais próxima do que desejamos para a produção artística, então o estudo desses achados arqueológicos e trabalhos como os de Cristina Suzuki são formas de se olhar para a frente. Ou, como dizia o professor Leon Kossovitch em suas aulas, seria “como olhar pelo retrovisor,” pois sem deixar de olhar para a frente é possível ver o que ficou para trás e o que talvez nos ultrapasse.

 

José Bento Ferreira

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Referências bibliográficas
 

Eric Wolf, A Europa e os povos sem história, Edusp, 2009.

Georges Didi-Huberman, A imagem sobrevivente, Contraponto, 2013.

Holly Pittman, Art of the bronze age, The Metropolitan Museum of Art, 1984.

Joseph Campbell, O vôo do pássaro selvagem, Rosa dos Ventos, 1997.

Marc Augé, A guerra dos sonhos, Papirus, 1998.

Vere Gordon Childe, Evolução cultural do homem, Zahar, 1975.

Fátima Roque

Fotocelular, 2006/2010

 

Luzes e sombras irrequietas e pulsantes fixadas em cores, por vezes em repouso, por outras em movimentos apressados apanhados por um aparelho cujo ritual secular vê-se agora alterado. Braços esticados, os dois olhos bem abertos, em considerável distância do corpo a registrar cotidianos ficcionais marcados por uma poética pessoal vigorosa e delicada poderiam ser as primeiras impressões do trabalho de Cristina Suzuki.

 

A desaceleração do olhar, no entanto, sugerida pela artista, quer através da apresentação das obras, quase na “palma da mão”, a reduzir distâncias, quer pelo livre acesso ao sentir e pensar o cotidiano em detalhes quase imperceptíveis à “olho nu”, fazem-nos recuperar nossas memórias individuais e coletivas, mas, essencialmente, estimula nossa capacidade de abstrair.

Cristina leva-nos a caminhar por lugares antes nunca vistos, embora já percorridos. Prolonga o trajeto para descobrirmos o que há na caminhada.  Traz uma verdade visual do mundo que ultrapassa o prazer estético recolocando a discussão ética da fotografia e dá, ironicamente, às imagens celulares o seu verdadeiro sentido tátil. 

 

Convite a vagar, contraponto do meio fugaz de apreensão do visível, para pôr a ver o não visto.

Fátima Roque

Fotógrafa

Saulo di Tarso

portrait | amores residuais

 

Na série “portrait”, Cristina Suzuki avança para espaços mínimos que surgem das matérias residuais do cotidiano. Se bem que um olhar devotado à cor, ao mesmo tempo se lança à investigação das frestas mínimas como a fechadura de uma porta, um corredor que se olha a distância, quase sem identificar o que propulsionar a imaginação, também, a andar pelo campo afetivo mimetizado desses espaços. O mínimo, o penetrável e o impenetrável. Um neo-kitsch, pop, R$ 1,99, nipo-pernambucano.

 

Na série “portrait” o espaço que Cristina elege é a casa. Uma casa retratada pelo tempo com que ela obtura frações do comportamento, as marcas de quem nela vive e das relações constituídas neste espaço em permanente mutação. Uma idéia de abandono emana de ladrilhos rachados; a necessidade de apoio se insinua à partir do talo da planta amarrada improvisadamente a um cabo de vassoura, tendendo a banalidade quase ridícula de uma caricatura fálica. Mas ocorre daí outra pulsação: a do gesto que intermitentemente varre. Ao varrer uma casa ou uma rua varre-se destinos. É assim que se encontra uma definição para além do banal nas definições quase banais da fotografia de Cristina Pereira para uma revelação da poesia do amor residual. Melhor dizendo, a fotografia de Cristina Pereira apreende do espaço as revelações de comportamento e não somente a própria natureza do espaço. 


A harmonia é evidente enquanto ciência compositiva de seu olhar e às vezes, de tão óbvia, ela quase é completamente abandonada no escopo da imagem. Tal como é a casa e como são tratados os resíduos que ela colhe nas lentes, um a um. E se estas imagens parecem ingênuas como conteúdo estético elas acentuam, por outro lado, a ingenuidade dos movimentos contínuos de quem não identifica a lógica residual das coisas e a tradução de sentidos e comportamentos que ela reluz.

O resíduo indica claramente a ação do sujeito no trabalho de Cristina Pereira. Caso queiramos investigar o habitante da casa fotografada é só prestarmos atenção no limiar de frestas, janelas, frascos, armários, varais, pedaços de chão e a maneira como se dispõe objetos dentro de outros móveis e a luz estranha que se projeta sobre espaços da intimidade, do banho, do sono e do desejo. Mas há também uma negação do sonho sobre toda a matéria residual. De repente, o interruptor apaga a cena. Porque não se move. 

É como se as casas transformassem-se na pele do sujeito que a habita, mascarando desejos de quem ama ou quem quer abandonar a própria casa.

 

A ruptura no olhar de Cristina Suzuki com a própria linguagem é quando ela propõe a ampliação deste universo micro-afetivo do espaço das relações: a casa vasa através das janelas, procurando o mundo onde outras possibilidades são possíveis. Mas a luz continua vindo do interior da casa para fora. Lá dentro o sol continua pálido. 

 

O mistério é que um muro impõe a linha do horizonte para a janela fechada e a cor reascende o silêncio do limite e deixa restar a simples beleza dos contrastes da cor encontrada no caminho de um passeio estranhamente paralisado, ali, mais uma vez detido - só que, desta vez, também detendo o olhar do espectador – à indagações do que estará por detrás das frestas da janela que nos olha detrás do muro. “Portrait”. Se o que Cristina fotografa são revelações quem vê suas imagens é que é o próprio retratato mas não porque pousa e sim porque vê e é neste instante quem define se as coisas residuais são ou não tão banais dentro da sua própria rede de afetos partindo da significação que a série “portrait” dá aos resíduos. A poeira e os líquidos ou a casa que é dos corpos mas onde o corpo está ausente. 

Saulo di Tarso

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